Simultaneamente à investigação da Polícia Federal sobre o esquema bilionário de evasão de divisas envolvendo criptoativos, lavagem de dinheiro pelo Primeiro Comando da Capital (PCC) e financiamento do grupo terrorista Hezbollah, começou a tramitar no Congresso Nacional um projeto que levou à exclusão de parte da responsabilidade dos bancos investigados pela Polícia Federal.
A mudança na legislação sobre operações de câmbio acabou sendo aprovada e concedeu anistia a cinco instituições financeiras investigadas pela PF por suposta participação no esquema criminoso. Os bancos investigados pela PF eram Mestre, Gênio, Travelex Banco de Câmbio S/A, Santander e Haitong Banco de Investimento do Brasil S/A. Outros quatro bancos e uma corretora se recusaram a participar da operação e denunciaram o esquema à PF. Procurados, os bancos negaram envolvimento em irregularidades, disseram que cumpriram as regras e que estiveram sempre à disposição das autoridades
Era 12 de setembro de 2019, quando o governo Jair Bolsonaro enviou ao Congresso o projeto de lei 5.387, que ficou conhecido como o “novo marco legal do câmbio”. Originalmente, o projeto não mencionava em seu artigo 4º a responsabilidade dos bancos ou dos clientes pela correta classificação das operações de câmbio, mas cancelou o artigo da lei 4.131, de 1962, que estabelecia a responsabilidade compartilhada entre ambos.
Em 07/01/2020, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) enviou o Relatório de Inteligência Financeira 43.719 à Receita Federal, ao Banco Central, ao Ministério Público Federal em São Paulo e à PF. Analisou movimentações financeiras bilionárias de empresas e operadoras de criptoativos envolvidas no esquema. Foi o início da investigação que afetaria os bancos.
Enquanto isso, o projeto continuou tramitando no Congresso e recebeu seis emendas ao longo de 2020, nenhuma delas tratando da responsabilidade de clientes e bancos.
Como foram encontrados indícios de crime e autoria, em 09/11/2020, a Delegacia de Repressão à Corrupção e Crimes Financeiros – Delecor, da Superintendência da PF em São Paulo – decidiu abrir inquérito e notificar a Justiça. No dia 10 de fevereiro de 2021, o relator do novo marco legal do câmbio fez uma série de alterações no projeto original do governo Bolsonaro, incluindo uma no parágrafo 2º do artigo 4º do projeto, deixando claro que o cliente era responsável pela classificação da operação. Aqui, segundo os policiais, foi aprofundado o principal argumento a ser utilizado pela PF para atribuir os crimes investigados a funcionários de instituições financeiras.
O Estadão procurou o relator do projeto, deputado Otto Alencar Filho. Ele afirmou em nota que a proposta de mudança lhe foi apresentada pelo Banco Central e acatada. Otto Alencar Filho diz que incluiu no parecer do projeto “dispositivos que simplificaram as obrigações tributárias acessórias exigidas pela Receita Federal, transferindo a responsabilidade pela classificação dos fins de suas operações de câmbio das instituições financeiras para os próprios contribuintes, com a devida ressalva de que as instituições operadoras de mercado deverão fornecer orientação e suporte técnico aos clientes que necessitarem de assistência durante a operação”.
Segundo o deputado, “essa medida resultou em maior simplificação do ambiente de negócios, reduziu a insegurança jurídica para as instituições financeiras e foi fruto de uma contribuição relevante e oportuna do Banco Central, que, após cuidadoso estudo técnico, propôs ajustes visando principalmente a segurança jurídica nas operações financeiras”.
O Banco Central, em nota enviada à reportagem, afirmou que o novo regime jurídico cambial “procurou, no plano jurídico, obrigar as instituições a se responsabilizarem pelo curso legal das operações cambiais ao invés de se eximirem dessa responsabilidade exigindo mecanicamente documentos que supostamente comprovassem a finalidade da operação”.
Com as alterações aceitas pelo deputado, o parágrafo 2º do artigo 4º do projeto passa a ter a seguinte redação: “É responsabilidade do cliente classificar o objeto da operação no mercado de câmbio, na forma prevista em regulamento a ser publicado pelo Banco Central do Brasil”.
O projeto ainda dependia de votação. Em 9 de abril de 2021, a Delecor pediu à Justiça a quebra do sigilo bancário dos suspeitos de envolvimento no esquema. A PF passou a oficializar os bancos que mantinham as contas dos investigados. Queria ter acesso aos documentos das operações e saber se tinham agido com a cautela necessária para evitar o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo. Eu também queria saber por que eles concordaram em fazer negócios com os investigados enquanto outros bancos recusaram. Em 29/12/2021 foi aprovado o novo regime cambial legal (lei 14.286, de 2021).
Como o BC não divulgou, na mesma data, as novas regras que deveriam ser seguidas pelos clientes no registro de operações de câmbio, o país passou a vivenciar um vazio jurídico sobre o tema, segundo entendimento dos delegados da PF. O novo quadro criou uma “norma criminal em branco”. Ou seja, retirou da lei o estabelecimento de obrigações de veracidade das informações cambiais e avançou para uma regulamentação a ser feita pelo BC.
Na ausência dessa nova regulamentação, as obrigações dos clientes e dos bancos ainda seriam definidas pela resolução 3.978, de 2020, e pela carta circular 3.690, de 2013, todas do BC. Este último também sujeitou os bancos a punições caso declarassem incorretamente o objetivo da operação. Isso porque em seu artigo segundo dizia: “A classificação incorreta sujeita as instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, autorizadas a operar no mercado de câmbio, às penalidades previstas na legislação e demais sanções administrativas do Banco Central do Brasil”.
Foi por meio da Resolução 277, publicada no final de 2022, que o BC fez as regulamentações solicitadas pelo novo marco legal do câmbio. O texto da resolução, de 31/12/2022, afirma em seu artigo 4º que é dever apenas dos clientes e não das instituições financeiras classificar corretamente as operações. A instituição financeira seria apenas obrigada a fornecer ao cliente formulários para que ele classificasse corretamente a operação.
Para a PF, não era mais possível acusar os bancos de evasão monetária e gestão fraudulenta.
O ‘direito penal em branco’
O Estadão consultou dois juristas especializados no combate à lavagem de dinheiro. Afirmaram que o argumento da PF sobre possíveis condutas ilícitas não existe mais, livrando os bancários de possíveis acusações de gestão fraudulenta e evasão cambial com base na Lei do Colarinho Branco. Isso porque eles não podem mais ser responsabilizados pela classificação incorreta de informações sobre as operações. O advogado Arthur Lemos Júnior, com 25 anos de experiência no combate à lavagem de dinheiro, explicou o efeito prático da chamada “norma penal em branco”.
“A lei diz que tráfico de drogas é crime, mas quem define o que é droga é a lista de entorpecentes da Anvisa. Quando uma delas deixa de ser considerada droga ilícita, o crime de tráfico em relação a ela deixa de existir.
Os juristas consultados pela reportagem lembraram que, no Código Penal Comentado, Júlio Mirabete e Renato Fabbrini afirmam que há retroatividade na alteração da chamada norma penal em branco “se a norma complementar (como a Resolução 277) não estiver vinculada a circunstância temporal ou excepcional, constituindo apenas um aperfeiçoamento da legislação”.
Neste caso, dizem os autores, “seria aplicado o princípio da retroatividade de uma lei mais benigna”. Ou seja, os bancos livraram-se de todas as punições, tanto criminais como administrativas. E nem mesmo os lucros obtidos com as operações, que eram ilícitas, segundo a PF, foram afetados.
Canal 562 ClaroTV+ | Canal 562 Céu | Canal 592 ao vivo | Canal 187 Olá | Operadores regionais
TV SINAL ABERTO: antena parabólica canal 562
ONLINE: www.timesbrasil.com.br | YouTube
Canais RÁPIDOS: Samsung TV Plus, canais LG, canais TCL, Pluto TV, Roku, Soul TV, Zapping | Novos fluxos