As grandes consultorias têm razão em dizer que o problema da IA não é técnico. Mas cometem o erro de tratar o assunto apenas como gestão. O verdadeiro desafio é criar um ambiente emocional, simbólico e cultural — e uma estratégia empresarial — que permita a coexistência da inteligência humana e artificial e aumente a competitividade.
O paradoxo da era inteligente
De acordo com o Boston Consulting Group, apenas 5% das empresas no mundo — as chamadas empresas construídas para o futuro — estão realmente a capturar valor da IA. Os restantes 95% permanecem presos numa lógica de pilotos dispersos e de iniciativas que morrem antes de amadurecerem.
A Harvard Business Review chama isso de “armadilha da experimentação”: quando o entusiasmo tecnológico é confundido com transformação organizacional. O Gartner, por sua vez, mostra que 66% dos CEOs acreditam que suas empresas não estão preparadas para a IA. E entre bilhões de dólares investidos, o retorno é quase zero.
Esses estudos são valiosos e necessários. Mas ainda permanecem presos a uma leitura técnica e comportamental da liderança. O que não captam — e o que me proponho explorar — é a dimensão simbólica, emocional e inconsciente que permeia toda transformação tecnológica. É nesta camada invisível que a inteligência artificial encontra o seu maior obstáculo: a inteligência emocional coletiva das organizações. E é justamente aí que reside o maior potencial para transformar o tsunami de IA numa verdadeira vantagem competitiva.
IA: da ferramenta à estratégia de negócios
É hora de parar de tratar a IA como um projeto tecnológico e começar a tratá-la como o que realmente é: uma estratégia de negócios. A IA não é um departamento, um software ou uma tendência: é uma nova lógica de criação de valor. Quando incorporado à estratégia corporativa, redefine a forma como a empresa aprende, decide e compete.
As empresas que integram a IA no coração dos seus negócios não apenas automatizam processos; eles expandem sua capacidade de imaginar e agir. Eles passam a operar com uma espécie de inteligência assistida — humana e algorítmica — capaz de antecipar movimentos de mercado, personalizar experiências e reinventar produtos. Tratar a IA como uma estratégia é, portanto, garantir que ela não seja uma moda passageira, mas um motor permanente de competitividade.
O meio ambiente antes da tecnologia
Na minha pesquisa sobre a psicodinâmica da vida organizacional, defendo que a IA não está instalada num sistema técnico — mas sim num sistema vivo, cheio de vínculos, medos e defesas emocionais. Toda inovação, por mais racional que pareça, desperta fantasmas coletivos: medo da obsolescência, culpa por não compreender, inveja de quem domina a tecnologia e ressentimento de quem se sente substituído.
A IA não ameaça apenas o trabalho – ela ameaça o significado do trabalho. E quando o significado entra em colapso, as organizações constroem mecanismos de defesa: negar a mudança, teatralizar a inovação ou terceirizar a responsabilidade para o “algoritmo”. É por isso que nenhuma transformação sólida ocorre sem desafiar os acordos invisíveis que apoiaram o modelo anterior. Mas quando esse abalo é compreendido e tratado com liderança, ele se transforma em energia de criação e não em resistência.
Liderança como uma função humana profunda
Relatórios da HBR, Gartner e BCG falam sobre qualificação, conhecimento de IA e uma cultura de experimentação. Tudo isto está correto, mas é insuficiente. Liderar a era da IA exige mais do que treinar cérebros – requer transformar as conexões humanas e alinhar a tecnologia com a estratégia.
A liderança, neste novo contexto, deixa de ser apenas um papel e passa a ser uma função emocional e estratégica do grupo: conter ansiedades, traduzir o desconhecido e reconfigurar o imaginário coletivo da empresa. O líder do futuro não será apenas um orquestrador do valor da IA — será um estrategista simbólico, capaz de fazer da IA não um risco, mas um eixo de vantagem competitiva. Seu papel não é resistir ao tsunami, mas aprender a direcionar suas forças para o propósito e a competitividade organizacional.
Da cultura técnica à cultura simbiótica
As empresas que serão realmente capazes de “respirar IA” serão aquelas capazes de criar ambientes simbióticos, onde humanos e máquinas colaboram em vez de competirem. Isto implica três movimentos simultâneos:
1. Transformar o espaço interno: abrir canais de diálogo, permitir que o medo seja nomeado e o aprendizado seja coletivo.
2. Reformule o poder: substitua o controle pela confiança e a obediência pela coautoria.
3. Humanizar a técnica: entender que cada algoritmo é uma extensão da cultura que o criou — e, portanto, carrega também seus preconceitos, crenças e defesas.
leia mais artigos da coluna de Joaquim Santini aqui
Enquanto as grandes consultorias buscam receitas, o que proponho é um caminho simbólico e estratégico, em que o líder se torna o intérprete do inconsciente organizacional e o arquiteto da estratégia de IA como vantagem competitiva.
A IA, neste sentido, não é uma revolução tecnológica – é um espelho emocional e estratégico que revela quem somos como coletivo. E quando olhamos para esse espelho com coragem, descobrimos que a tecnologia não está aqui para nos substituir, mas para nos expandir.
O futuro não é artificial — é estratégico e relacional
A verdadeira vantagem competitiva da próxima década não virá de quem adotar mais ferramentas, mas sim de quem fizer da IA o centro da sua estratégia de negócios, guiado por propósito, aprendizado contínuo e confiança. A empresa que compreender isto primeiro não apenas sobreviverá ao tsunami, mas também o transformará numa corrente de impulso, inovação e vantagem sustentável. O futuro da IA não será sobre máquinas, mas sobre organizações inteligentes o suficiente para unir emoção, estratégia e tecnologia no mesmo fluxo criativo.
CAIXA — A nova liderança para a era da IA, segundo Joaquim Santini:
· Transformar a IA em estratégia de negócios: conectá-la diretamente à geração de valor e competitividade.
· Interpretar o inconsciente organizacional: ouvir medos e resistências antes de implementar tecnologia.
· Crie rituais de transição: simbolize o fim do velho e o nascimento do novo.
· Transforme a culpa em curiosidade: substitua a negação pela aprendizagem coletiva.
· Construir coautoria entre homem e máquina: eliminar hierarquias entre quem decide e quem executa.
· Cultivar o pensamento complexo: entender a IA como um fenômeno técnico, social, emocional e estratégico.
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