O fenômeno revela, por um lado, a adaptabilidade das empresas e dos governos latino-americanos diante dos choques externos; por outro, revela a falta de coordenação regional.
Não é uma estratégia nova, nem foi inventada pelo Brasil. A triangulação comercial existe desde que o comércio foi estabelecido pela humanidade, talvez há cerca de seis mil anos, quando as caravanas desviaram as rotas para escapar aos impostos, às guerras ou às restrições políticas. Desde então, o mundo mudou, mas a lógica mantém-se: quando as barreiras dificultam o acesso direto a um mercado, os agentes económicos procuram caminhos alternativos.
Foi exatamente isso que começou a acontecer na América do Sul depois que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou uma tarifa de 50% sobre os produtos brasileiros, em julho, e mais precisamente desde 2 de abril —data que a própria Casa Branca denominou “dia da libertação”.
A decisão afetou importantes setores do agronegócio brasileiro, como carnes, laranjas e café, e rapidamente provocou um rearranjo silencioso das rotas comerciais da região. Sem opção pelo suco de laranja brasileiro, Trump voltou a taxar o produto.
Para outros, países vizinhos com produção própria e acesso ao mercado americano passaram a atuar como intermediários. A Argentina, com sua carne, e a Colômbia, com seu café, aproveitaram a valorização de suas moedas para comprar barato do Brasil e vender em dólares aos Estados Unidos. O Brasil, por sua vez, encontrou compradores e não perdeu produção.
No caso da carne bovina, os números contam uma história reveladora. Em todo o ano de 2024, o Brasil exportou apenas 698 toneladas do produto para a Argentina. Em 2025, só nos primeiros nove meses, esse número explodiu para 10.326 toneladas — um salto de 1.400%. Setembro foi particularmente simbólico: foram embarcadas 2.424 toneladas, quase 9.000% a mais que no mesmo mês do ano anterior. Este aumento repentino coincidiu com o início da aplicação efetiva das tarifas americanas e com um movimento simultâneo do lado argentino.
De janeiro a agosto, as exportações de carne bovina da Argentina para os EUA atingiram US$ 2,256 bilhões, um crescimento de 24% em relação ao mesmo período do ano anterior e 20% acima da média dos últimos cinco anos, segundo a Bolsa de Valores de Rosário. A forte procura americana – resultado de uma seca prolongada que reduziu o rebanho interno e aumentou os preços da nutrição animal – impulsionou os preços da carne argentina em 40% nesse período.
Na prática, a Argentina passou a importar volumes significativos de carne brasileira para suprir seu consumo interno, liberando parte de sua produção para o mercado americano, onde obtém preços mais elevados. É uma triangulação clássica: o produto não entra nos EUA com o rótulo “Brasil”, mas com “Argentina”, embora parte significativa da oferta venha de frigoríficos brasileiros.
Com o café, o funcionamento é semelhante, embora mais sutil. A Colômbia, tradicional fornecedora de cafés especiais para os EUA, intensificou as compras de café brasileiro em 2025. Entre janeiro e setembro, foram exportadas 585 mil toneladas de café do Brasil para o país andino, quase 30% a mais que no ano anterior. Em agosto, o volume foi de 112.948 toneladas, ante apenas 16.649 no mesmo mês de 2024. Ao mesmo tempo, as exportações colombianas para os EUA continuaram crescendo: 467,5 mil sacas em agosto, superando as 452,1 mil sacas do ano anterior.

Na prática, os colombianos consomem mais café brasileiro no mercado interno, o que lhes permite enviar uma parcela maior da sua própria produção para os Estados Unidos – exatamente o mesmo mecanismo observado no setor de carnes com a Argentina.

Do ponto de vista económico, os especialistas destacam que a triangulação é uma solução paliativa.
O economista Igor Lucena explica que a prática se apoia principalmente em um cálculo pragmático: mesmo com os custos extras de frete, seguro e intermediação, triangulando via países vizinhos, os exportadores brasileiros ainda conseguem reduzir o impacto das tarifas de 30%, 40% ou 50% impostas pelos Estados Unidos. É uma conta que fecha no curto prazo, mas está longe de ser neutra.
Além de encarecer as operações, esse tipo de arranjo depende da disposição dos países intermediários. Podem aceitar o papel de armazéns, como fizeram a Argentina e a Colômbia até agora, ou optar por expandir a sua própria produção e competir diretamente pelo mercado americano – reduzindo, ao longo do tempo, o espaço do Brasil. Lucena destaca ainda que, caso os EUA identifiquem uma triangulação irregular, poderão aplicar sanções tanto ao país intermediário quanto ao exportador original, como sobretaxas retroativas ou restrições específicas.
As consequências vão além da economia. Do ponto de vista fiscal e contabilístico, as empresas que recorrem a triangulações pouco transparentes podem acumular riscos significativos. Marcello Marin, especialista em governança corporativa, observa que a engenharia de triangulação pode ser vista como irregular pelas autoridades fiscais locais e internacionais, gerando multas, cobranças retroativas e até bloqueio de operações. Como os registros muitas vezes são opacos, as empresas acabam se expondo a questões contábeis e de compliance que podem explodir no futuro.
Esta falta de clareza, explica Marin, pode minar a confiança dos investidores e das instituições financeiras. “Funciona no curto prazo, sem queda de receita, mas no longo prazo a valorização da empresa sofre, o custo do crédito aumenta e a governança fica frágil”, afirma. Em mercados globais cada vez mais supervisionados, estas fraquezas tendem a ser duramente penalizadas.
Do ponto de vista jurídico, a triangulação não é necessariamente ilegal. O advogado e árbitro Larry Carvalho lembra que as regras da Organização Mundial do Comércio e dos acordos de livre comércio permitem operações de importação e reexportação via terceiros países, desde que haja transparência e transformação substancial da mercadoria no território intermediário.
O problema surge quando a triangulação é reduzida à mera reclassificação da origem — a chamada fraude de transbordo. Neste caso, há clara violação das regras de origem, abrindo espaço para investigações e retaliações.
Carvalho explica que as autoridades americanas já monitoram de perto os movimentos na América do Sul e sinalizaram investigações sobre fluxos suspeitos de carne e café. As consequências, diz ele, podem ser graves: endurecimento tarifário, fiscalização mais rigorosa e até proibições individuais de empresas brasileiras exportarem para os EUA caso seja comprovada fraude. É um cenário de “ganho imediato, elevado risco futuro” que mina a previsibilidade das cadeias de abastecimento globais.
O fenômeno da triangulação revela, por um lado, a adaptabilidade das empresas e governos latino-americanos diante dos choques externos; por outro, revela a falta de coordenação regional. Em vez de políticas comerciais integradas ou negociações conjuntas, a resposta às tarifas americanas tem sido marcada por soluções improvisadas, com ganhos específicos, riscos difusos e poucas perspectivas de longo prazo.
Enquanto as tarifas de Trump permanecerem em vigor e não houver avanços concretos nas negociações bilaterais, o “jeito latino” cumpre o papel de manter o fluxo de produtos brasileiros no mercado americano — mas à custa de mais custos logísticos, riscos jurídicos e uma delicada dependência de parceiros intermediários. É um arranjo engenhoso mas instável que diz tanto sobre a inventividade da região como sobre os seus limites estruturais.
Canal 562 ClaroTV+ | Canal 562 Céu | Canal 592 ao vivo | Canal 187 Olá | Operadores regionais
TV SINAL ABERTO: antena parabólica canal 562
ONLINE: www.timesbrasil.com.br | YouTube
Canais RÁPIDOS: Samsung TV Plus, canais LG, canais TCL, Pluto TV, Roku, Soul TV, Zapping | Novos fluxos